Trata-se de um conjunto de 9 peças pequenas (telas de 30 x 24 cm) que têm a particularidade de serem, em simultâneo, entidades individuais e parte de um todo.
Em conjunto formam uma imagem de 90 x 72 cm, correspondente ao que seria a imagem de determinada memória. Individualmente, cada pequena tela um fragmento dessa memória.
À semelhança da forma como se processa a preservação ou desagregação da nossa memória, por vezes temos mais "peças", outras vezes menos, para reconstituir um facto ou uma determinada experiência passada. Pode faltar-nos a "peça-chave", ou mesmo uma ou outra peça de menor importância, mas sempre ausências que nos impedem de aceder à totalidade dessa experiência.
No caso desta pintura, no momento em que uma das pequenas telas for oferecida, doada ou adquirida, dar-se-á início ao processo de "fragmentação da memória", o princípio da perda progressiva da totalidade desta imagem.
Torna-se interessante pensar no destino aleatório de cada fragmento: a parede da casa de alguém, a galeria de arte, ou simplesmente perdido no espaço onde pinto. Uma incógnita. Mas perder-se-á seguramente a "memória" da imagem inaugural. O encontro com uma ou algumas das partes poderá eventualmente remeter para um trabalho semelhante ao do arqueólogo, do historiador ou do psicanalista, que procuram chegar ao sentido global a partir dos fragmentos com que se deparam.
Esta pintura (na linha do que tenho vindo a fazer), vista no seu todo, tem várias inscrições com o tipo do diálogo mental que nos ocorre no dia a dia, do qual vamos tendo mais ou menos consciência: "quero-te", "lembras-te da primeira vez que saímos juntos?", "isso é verdade", "tudo bem, logo se vê", as conversas interiores com que procuramos organizar a nossa experiência, principalmente relacional. Mas o que é desconcertante é que tais pensamentos e formas de expressão, estando lá, não são totalmente visíveis, uns ainda se apanham pelo que sobra deles, outros por intuição, de outros já só sobram vestígios. Outros estão entrecortados. Algumas das inscrições foram desaparecendo com o decorrer da pintura e nem eu me lembro delas. Tudo isto como que a lembrar que a nossa pretensão de termos preservada a memória integral da nossa experiência não passa disso mesmo, uma pretensão ou uma outra forma de ilusão.
O "quero-te", por exemplo, aparece "quero" (tela 1) "te" (tela 2). Vistos em conjunto a leitura é unívoca e linear, em separado (o que é muito mais interessante) obriga-nos a completar e a dar um sentido: Se eu tiver apenas a tela1 "quero" o quê ou a quem? Se eu tiver apenas a tela 2 na minha posse o "te" é ainda mais vago e enigmático, podendo ser muita coisa: amo-te, odeio-te, quero-te, interessante, quente, transparente, invariavelmente, irrelevante, importante, semente, tenente, triste ou contente, etc. etc. ... . Cabe-me a mim decidir, talvez uma coisa diferente cada vez que olhar para o quadro.
Às vezes há mais fragmentos na posse dos outros e é preciso humildade para lhes pedirmos para ver, como peças de um puzzle do qual já só temos uma pequena parte.
Mas cada fragmento pode vir a ser, individualmente, a partir do tal destino aleatório que a cada um está reservado, não um bocado isolado e incompleto, mas o início de um novo sentido ou de uma nova sensibilidade: uma imagem inspiradora para alguém que a tenha pendurada na parede de casa (que funciona por si mesma, mesmo separada das restantes), uma perspetiva de negócio para o galerista que a esteja a querer vender ou uma pista para um novo trabalho quando com ele 'tropeçar' daqui a algum tempo no meio da desarrumação das coisas. MARCOS MARINHEIRO, 2014.
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